A Função da Arte

Edvard Munch: Karl Johan ao Anoitecer, 1892, Óleo s/ tela, 84,50 x 121 cm 
Discutir a função da arte é algo no mínimo intrigante. Por que se faz uma coisa que aparentemente é inútil? Sem utilidade aos olhares imediatistas de nossa sociedade materialista.


Para tentar entender melhor esta questão, trago aqui alguns trechos do livro de FISCHER, Ernst. A Necessidade da Arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.


"A poesia é indispensável. Se eu ao menos soubesse para quê..." Com este encantador e paradoxal epigrama, Jean Cocteau resumiu ao mesmo tempo a necessidade da arte e o seu discutível papel no atual mundo burguês.

O pintor Mondrian, por sua vez, falou do possível "desaparecimento" da arte. A realidade, segundo ele acreditava, iria cada vez mais deslocando a obra de arte, que essencialmente não passaria de uma compensação para o equilíbrio deficiente da realidade atual. "A arte desaparecerá na medida em que a vida adquirir mais equilíbrio".

A arte concebida como "substituto da vida", como o meio de colocar em estado de equilíbrio com o meio circundante trata-se de uma idéia que contém o reconhecimento parcial da natureza da arte e da sua necessidade. Desde que um permanente equilíbrio entre o homem e o mundo que o circunda não pode ser previsto nem para a mais desenvolvida das sociedades, trata-se de uma idéia que sugere, também, que a arte não só é necessária e tem sido necessária, mas igualmente que a arte continuará sendo sempre necessária.

No entanto, será a arte apenas um substituto? Não expressará ela também uma relação mais profunda entre o homem e o mundo? E, naturalmente, poderá a função da arte ser resumida em uma única fórmula? Não satisfará ela diversas e variadas necessidades? E se, observando as origens da arte, chegarmos a conhecer a sua função inicial, não verificaremos também que essa função inicial se modificou e que novas funções passaram a existir?

Como primeiro passo, é preciso advertir que tendemos a considerar natural (e aceitá-lo como tal) um fenômeno surpreendente. E, de fato, referimo-nos a algo surpreendente: milhões de pessoas lêem livros, ouvem música, vão ao teatro e ao cinema. Por quê? Dizer que procuram distração, divertimento, a relaxação, é não resolver o problema. Por que distrai, diverte e relaxa o mergulhar nos problemas e na vida dos outros, o identificar-se com uma pintura ou música, o identificar-se com os tipos de um romance, de uma peça ou de um filme? Por que reagimos em face dessas "irrealidades" como se elas fossem a realidade intensificada? Que estranho, misterioso divertimento é esse? E, se alguém nos responde que almejamos escapar de uma existência insatisfatória para uma existência mais rica através de uma experiência sem riscos, então uma nova pergunta se apresenta: Por que esse desejo de completar a nossa vida incompleta através de outras figuras e outras formas? Por que, da penumbra do auditório, fixamos o nosso olhar admirado em um palco iluminado, onde acontece algo que é fictício e que tão completamente absorve a nossa atenção?

É claro que o homem quer ser mais do que apenas ele mesmo, quer ser um homem total. Não lhe basta ser um indivíduo; além da parcialidade da sua vida individual, anseia uma "plenitude" que sente e tenta alcançar, uma plenitude que lhe é fraudada pela individualidade e todas as suas limitações; uma plenitude na direção da qual se orienta quando busca um mundo mais compreensível e mais justo, um mundo que tenha significação. Rebela-se contra o ter de se consumir no quadro da sua vida pessoal, dentro das possibilidades transitórias e limitadas da sua exclusiva personalidade. Quer relacionar-se a alguma coisa mais do que o "eu", alguma coisa que, sendo exterior a ele mesmo, não deixe de ser-lhe essencial. O homem anseia por absorver o mundo circundante, integrá-lo a si; anseia por estender pela ciência e pela tecnologia o seu "eu" curioso e faminto de mundo até as mais remotas constelações e até os mais profundos segredos do átomo; anseia por unir na arte o seu "eu" limitado com uma existência humana coletiva e por tornar social a sua individualidade.

O desejo do homem de se desenvolver e completar indica que ele é mais do que um indivíduo. Sente que só pode atingir a plenitude se se apoderar de experiências alheias que potencialmente lhe concernem, que poderiam ser dele. E o que um homem sente como potencialmente seu inclui tudo aquilo de que a humanidade, como um todo, é capaz. A arte é o meio indispensável para essa união do indivíduo com o todo; reflete a infinita capacidade humana para a associação, para a circulação de experiências e idéias.

Não será talvez essa definição demasiado romântica? Não conterá a arte, também, o contrário dessa perda "Dionisíaca" de si mesmo? Não conterá a arte igualmente o elemento "Apolíneo" de divertimento e satisfação que consiste precisamente no fato de que o observador se identifica com o que está sendo representado, e até se distancia do que está sendo representado, escapa do poder direto com que a realidade o subjuga, através da representação do real, e liberta-se na arte do esmagamento em que se acha sob o cotidiano?  A mesma dualidade - de um lado, a absorção na realidade e, de outro, a excitação de controlá-la - não se evidencia no próprio modo de trabalhar do artista?

No mundo alienado em que vivemos, a realidade social precisa ser mostrada no seu mecanismo de aprisionamento, posta sob uma luz que devasse a "alienação" do tema e dos personagens. A obra de arte deve apoderar-se da platéia não através da identificação passiva, mas através de uma apelo à razão que requeira ação e decisão. As normas que fixam as relações entre os homens hão de ser tratadas no drama como "temporárias e imperfeitas", de maneira que o espectador seja levado a algo mais produtivo do que a mera observação, seja levado a pensar no curso da peça e incitado a formular um julgamento, afinal, quanto ao que viu: "Não era assim que devia ser. É estranho, quase inacreditável. Precisa deixar de ser assim". Desse modo, o espectador - no caso, um homem ou uma mulher que vivem do trabalho - virá ao teatro para divertir-se assistindo às suas próprias atribuições, às durezas do trabalho de que depende a sua subsistência, bem como para sofrer os impactos das suas incessantes transformações. Aqui, ele poderá produzir-se a si mesmo da maneira mais fácil, pois o modo mais fácil de existência é exatamente a arte.

A razão de ser da arte nunca permanece inteiramente a mesma. Toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade em consonância com as ideias e aspirações, as necessidades e as esperanças de uma situação histórica particular. Mas, ao mesmo tempo, a arte supera essa limitação e, de dentro do momento histórico, cria também um momento de humanidade que promete constância no desenvolvimento. Como acontece com a evolução do próprio mundo, a história da humanidade não é apenas uma contraditória descontinuidade, mas também uma continuidade. Coisas antigas, aparentemente há muito esquecidas, são preservadas dentro de nós, continuam a agir dentro de nós - frequentemente sem que as percebamos - e de repente vêm a superfície e começam a nos falar.

Quanto mais chegamos a conhecer trabalhos de arte há muito esquecidos e perdidos, tanto mais claramente enxergamos, apesar da variedade deles, seus elementos contínuos e comuns. São fragmentos que se acrescentam a outros fragmentos para irem compondo a humanidade.

A arte em sua origem foi magia, foi um auxílio mágico à dominação de um mundo real inexplorado. Esse papel mágico da arte foi progressivamente cedendo lugar ao papel de clarificação das relações sociais. Uma sociedade altamente complexificada, com suas relações e contradições sociais multiplicadas, já não pode ser representada à maneira dos mitos. Em semelhante sociedade, que exige reconhecimento preciso e consciência global diversificada, se é obrigado a romper com as formas rígidas dos tempos primitivos em que o elemento mágico imperava e chega-se a formas abertas, à liberdade formal. A predominância de um dos dois elementos da arte em um momento particular depende do estágio alcançado pela sociedade: algumas vezes predominará a sugestão mágica, outras a racionalidade, o esclarecimento, algumas vezes predominará a intuição, o sonho, outras o desejo de aguçar a percepção. Porém, quer embalando, quer despertando, jogando com sombras ou trazendo luzes, a arte jamais é uma mera descrição clínica do real. Sua função concerne sempre ao homem total, capacita o "eu" a identificar-se com a vida dos outros, capacita-o a incorporar a si aquilo que ele não é, mas tem possibilidade de ser.

É verdade que a função essencial da arte para uma classe destinada a transformar o mundo não é a de fazer mágica e sim a de esclarecer e incitar à ação; mas é igualmente verdade que um resíduo mágico na arte não pode ser inteiramente eliminado, de vez que sem este resíduo provindo de sua natureza original a arte deixa de ser arte. Em todas as suas formas de desenvolvimento, na dignidade e na comicidade, na persuasão e na exageração, na significação e no absurdo, na fantasia e na realidade, a arte tem sempre um pouco a ver com a magia.

A arte é necessária para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo. Mas a arte também é necessária em virtude da magia que lhe é inerente.

Continuação: A Função da Arte II

Comentários

  1. Um texto interessante!

    Não conhecia esta tela de Munch tem algo de Van Gogh. Um belo post!
    Gostei tanto da citação de Cocteau.
    De Mondrian já conhecia e tenho algo na janela do costume.

    Boa tarde!:)

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  2. A arte é o que nos distingue no reino animal.
    Sem ela não estariamos num patamar superior.
    Belas considerações!

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  3. Olá Raul!!!

    A arte é mesmo revolucionária, é como diz o texto: "A arte é necessária para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo. Mas a arte também é necessária em virtude da magia que lhe é inerente."
    Muito bonito e verdadeiro o que você escreveu lá no comentário sobre o amor no meu blog, daria um ótimo post sobre o assunto.
    Bjs :)

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  4. Olá Raul, acredito que arte jamais vai desaparecer, pois ela é a própria tradução da vida, quer seja bonita ou não. Obrigada pelos parabéns, Deus o abençoe!

    Um abraço.

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  5. Raul Campani,sinto-me lisongeada em estar aqui.A primeira vista vejo com muita satisfação o assunto "ARTE" e a necessidade dela na Vida. Tenho o livro "A necessidade da Arte" há muitos anos e não o perco de vista. Parabéns pela citação, pela arte que faz parte de nossa vida, a oportunidade de aqui estar e e poder aplaudí-lo pelo seu interessantissimo blog. Um abraço meu.

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    Respostas
    1. Obrigado pela visita e pelas palavras!
      Espero que continue visitando o blog e comentando, é importante que pessoas interessadas em Arte participem.

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  6. Oi Raul
    Interessante o texto .É sempre muito bom ler sobre Arte .
    A escultura é linda e instigante!
    Obrigada pela atenção e visita.
    boa semana

    * estive aqui outro dia e deixei um comentário/não sei se errei qualquer coisa porque não o vejo mais.
    Pode ter falhado.rs
    abraços

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    1. Oi Lis,
      Você deixou seu comentário na postagem sobre o Laçador. Mas que bom que você veio novamente fazer seu comentário, é sempre bom ter a participação dos colegas da blogosfera.
      Abraços

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